NÃO ESCREVA
“As imediações da torre estavam mais movimentadas naquele dia. Alguns aprendizes aproveitavam a tarde quente do lado de fora, conversando despreocupadamente na beira do lago. Outros praticavam um esporte que envolvia vassouras e o lançamento de bolas. Uma dupla dormia tranquilamente embaixo da sombra de um enorme carvalho. Cada um aproveitava do seu jeito.
Você, por outro lado, estava dentro da Torre e observava a movimentação da janela. Você tinha muito para escrever e trabalhar. Sua cabeça estava cheia de ideias. Para falar a verdade, nunca em tanto tempo você possuía tanto para escrever. Sobre as mesas da sala circular, dezenas das suas anotações se espalhavam, entre livros abertos e garrafas de líquido roxo pela metade. Seu grimório estava preenchido com várias técnicas e ideias. Tudo parecia ótimo, mas não estava.
Apesar de tantas ideias na cabeça, registradas em vários esquemas e fluxogramas, algo estava errado. Era meio da manhã e você tinha tudo já preparado para começar uma história: tinha uma boa personagem principal, um enredo interessante e o primeiro gatilho da história concebido. Não havia nenhuma ponta solta ou algo crítico que precisasse lidar. Na verdade, não havia algo errado, mas ao mesmo tempo, não parecia certo.
O livro a sua frente estava aberto, pronto para ser escrito, mas você não conseguira passar do título. Por alguma razão, você não tinha vontade de escrever. Não se podia culpar a falta de inspiração, se algo não faltava, esse algo eram ideias! Também não era bem ausência de motivo: você sabia por que escrever, a história fazia sentido e você queria conta-la. Apesar disso, por algum motivo obscuro, você não tinha ambição de escrevê-la naquele momento – e sinceramente, não tivera o dia todo, desde que concebera todos os detalhes de sua estrutura.
Você se sentou na cadeira – pela vigésima vez naquele dia – e encarou o livro em branco a sua frente. Com a pena em mãos, você começou a escrever sentenças no papel. Na terceira linha, um suspiro longo e desanimado brotou dos seus lábios. Aquilo não estava dando certo. Não estava fluindo. Você rasgou mais uma das folhas e jogou junto a pilha que se acumulava num dos cantos da sala circular.
Sem vontade de prosseguir nas tentativas, você encarou o teto. Uma brisa suave entrou pela janela. As vozes das pessoas do lado de fora da torre eram altas e carregadas de animação – se ao menos você pudesse se concentrar…
Um objeto entrou fazendo estardalhaço pela janela da torre, pousando sobre a pilha de papeis que você acumulava. Com surpresa, você se levantou de um salto, em busca daquilo. O couro marrom se destacava entre os papéis.
– Hey, desculpe por isso. O arremesso foi mais forte que eu esperava. – Disse uma aprendiz do outro lado da janela, ostentando um enorme sorriso. Você podia ver apenas sua cabeça, e supôs que elaestivesse montado numa vassoura. – Pode nos devolver a bola?
– Sim, claro. Sem problemas. – Você disse, encarando a bola com desânimo. – Aqui está.
– Obrigado. – Ela disse, estendendo o braço pela janela e aceitando o objeto de volta.
Você se virou para retornar aos trabalhos, quando a voz dela soou novamente, indicando que ela não havia indo embora.
– Você talvez devesse dar uma saída. Está um dia maravilhoso lá fora. – Antes que você pudesse protestar, ele continuou. – Algumas horas de distração não lhe fará mal e, pelo visto, não está sendo muito produtivo de qualquer forma. – Ela disse, esboçando um sorriso enquanto apontava para os papéis no chão. Seu desânimo não lhe dava realmente forças para responder – Bom, não quero lhe atrapalhar. Obrigado mais uma vez e boa sorte.
Você odiava admitir, mas ela tinha razão. Você se aproximou da janela – talvez um tempinho não fizesse mal. As pessoas pareciam realmente se divertir lá fora, e ali dentro não fora produtivo o dia todo. Ainda com incerteza, você se dirigiu para a saída da torre – não planejava demorar muito. Antes de sair, você deu uma olhada em um ótimo livro que você não tivera a oportunidade de ler nas últimas semanas. Instintivamente, você pegou o livro desceu as escadas. Aquilo afinal parecia uma boa ideia.”
Então você quer ser um escritor? Tem dias que parece impossível não é? É, sei como é isso. Idéias e razões para escrever nem sempre são o suficiente para que você consiga, de fato, materializar alguma coisa.
Nesse momento, eu tenho seis contos com estrutura e enredo definidos (dois deles minisséries), tenho bons motivos para escrever, mas simplesmente não consigo. Fico parado, diante da tela do computador, sem vontade de escrever.
Parte disso é culpa minha. Alguns dias atrás, li uma carta do genial George Martin para o seu editor. A carta era nada mais nada menos que o argumento de toda a obra de Crônicas de Gelo e Fogo, com enfoque especial de A Guerra dos Tronos. Talvez você não saiba o que é o argumento de um texto, – esse assunto ainda vai aparecer aqui! – mas ele é basicamente o resumo da sua obra, com tudo que acontece, inclusive o fim – isso mesmo – e serve para convencer as editoras a publicarem o seu livro, sem que precisem lê-lo completamente. Mas o ponto que me chamou atenção na carta foi o seguinte trecho:
Como você sabe, eu não resumo meus romances. Eu penso que se eu souber exatamente o que vai acontecer no meu livro, eu perco todo o interesse em escrevê-lo. Eu com certeza, no entanto, tenho boa noção da estrutura geral da história que estou contando, e o possível destino de muitos de meus principais personagens na trama. – George R. R. Martin
No meu caso, em alguns dos projetos, eu fiz exatamente isso, e por essa razão talvez tenha perdido a vontade de escrever. É possível que no seu caso a avidez tenha sumido por outras razões, – ou talvez ela nem tenha sumido ainda – mas vamos falar dela e o quanto ela é importante para escrita e, quem sabe, como podemos sempre mantê-la viva.
Avidez
Pode-se dizer que, na criação de qualquer coisa que seja, existem três pilares principais: Inspiração, Motivação e Avidez. Isso significa que, no processo criativo, o conjunto desses fatores faz com que você esteja apto a criar, e criar com qualidade.
A inspiração pode ser definida como o que escrever. É aquela ideia que vem naquele momento oportuno e te guia para o que fazer.
A motivação é o por que escrever. É aquela certeza que você tem de que deve contar aquela história. Aquela sensação de que a história merece ser contada e que você é capaz de contá-la.
A avidez é a vontade de escrever. A ambição de escrever. É o quanto você está ávido. É aquele impulso que te move, que te faz ter vontade de escrever no meio da noite, no meio de uma festa, enquanto faz uma caminhada, enquanto assiste um filme. Aquele instinto indescritível que pulsa na sua cabeça dizendo ESCREVA.
Sem avidez, a história parece forçada. Mesmo que você tenha ótimas ideias e uma boa razão e intenção para escrever, se não houver vontade, a história não vai se propagar. A escrita não vai ser fluida. As palavras vão parecer mal encaixadas e isso vai se traduzir na leitura. Sabe aquele texto que não te prende? Que não te traz interesse? Aquele texto que você se esforça pra ler por que parece que houve um enorme esforço para ser escrito? Bom, eu tenho certeza que você não quer isso quando as pessoas lerem seus textos não é?
A melhor palavra para avidez talvez seja paixão, mas não importa como você a chama, sua relevância é a mesma.
A perda da avidez
Enquanto o vilão da inspiração é o bloqueio criativo, e o da motivação é o desânimo, o da avidez é o desinteresse. A falta de paixão pelo que se está fazendo pode tornar aquilo impossível de fazer. I
Uma vez eu li o relato de um escritor que perdeu seus membros na guerra comparar a perda da avidez com o primeiro ano convivendo com sua nova realidade:
Eu acordava, pronto pra levar o dia, apenas para ver aquela cadeira de rodas e perceber que eu não tinha pernas. Perder minha paixão por escrever as coisas se parece muito com aquilo.
Uma vez que você perceba que está sem sua avidez, nada vai te impedir de ter aquela sensação de desolação.
Não se sinta mal, isso é algo que pode acontecer com você pelo menos uma vez, e até de tempos em tempos. Existem várias razões para isso e todas elas vem como um sinal, que pode ser reconhecido antes que a avidez suma completamente.
Sinais
Scott Kuttner, um escritor freelancer americano com 36 anos de experiência, fala de alguns desses sinais de que você está perdendo a avidez por escrever – e como reverter a situação. Abaixo eles estão apresentados, em conjunto com outros sinais que identifiquei:
- Preguiça de pesquisar: Para um verdadeiro escritor, a jornada de pesquisa é tão – ou até mesmo mais – interessante quanto realmente escrever. Cada etapa da pesquisa é familiar, indolor e nos deixa mais próximos de nossos objetivos. Se essa etapa se tornou dolorosa ou lhe dá preguiça, então há algo errado;
- Trabalhoso demais: Escrever dá trabalho, isso é verdade. Mas você enxerga isso como um sacrifício ou esse tempo como perdido? Se você não tem mais prazer em escrever e contar histórias, então esse é um sinal que você está perdendo a paixão;
- Dificuldade em aceitar críticas / mudanças: Um editor próprio, – alguém que você confia para ler e criticar seus trabalhos ou sugerir mudanças – sempre vai almejar o melhor para o seu trabalho. Se você chegou em um ponto que não consegue suportar críticas e fica nervoso com elas, talvez isso signifique que você não está preparado para trabalhar naquilo ou não quer melhorar seu processo. Quando se ama escrever, aprender e melhorar seu trabalho faz parte da escrita;
- Conflitos com metas: É interessante escrever de maneira desprendida e sem preocupações, mas se você frequentemente estipula metas de datas e prazos – ou recebe essas metas para o caso de um escritor freelancer – e não consegue alcançá-las e tem dificuldades para isso, então é possível que a escrita tenha se tornado um fardo;
- Distração: Se você passa mais tempo no seu email, em alguma rede social, navegando na internet, ou fazendo qualquer outra coisa para evitar escrever, e tem dificuldades para se concentrar no processo, então há algo errado. Esse talvez seja o ponto mais crítico de toda a jornada para longe da avidez. Se você alcançou esse ponto, é hora de recuperar o controle da sua paixão.
Aquilo que você está escrevendo deve te alimentar. Deve ser o combustível para queimar o fogo das suas ideias. Escrever deve fazer você ficar incontrolavelmente empolgado. Se há muito tempo isso não acontece e você reconhece algum desses sinais, é possível que você esteja próximo de alcançar o ponto em que você vai perder a avidez por escrever, e trilhar um difícil caminho.
Mantendo e Recuperando a Avidez
Enquanto o vilão da inspiração é o bloqueio criativo, e o da motivação o desânimo, o da avidez é o desinteresse. A falta de paixão pelo que se está fazendo, pode tornar aquilo impossível de fazer e é algo que pode – e provavelmente vai – acontecer com você de tempos em tempos. Apesar disso, existem maneiras de se contornar essa situação.
A paixão pela escrita é como uma chama, e o melhor é não deixar que ela se apague, mas se acontecer, nada impede que você acenda-a novamente.
Mantendo a avidez
A primeira recomendação para quem quer evitar que a paixão pela escrita suma, é justamente escrever nos momentos de picos de avidez. Às vezes eu estou no meio de um filme e sinto uma vontade imensa de escrever algo. Um desejo absolutamente intenso de produzir. Nessas horas o que eu tento fazer é escrever tão logo quanto possível para aproveitar aquele ímpeto. Quando você aproveita seus ápices de paixão, você retroalimenta essa vontade pois ela é mantida pelo prazer. Seu cérebro tem o hábito de te dar paixão a fazer apenas as coisas que lhe dão prazer, e te desanimar a fazer àquelas que lhe parecem dolorosas. Prazer assimila prazer e estimula prazer, lembre-se disso. Perder o timing da avidez pode lhe custar o próximo ciclo de avidez.
Volta e meia, quando eu escrevo demais, me sinto cansado, improdutivo e pressionado. Acontece muito quando o que eu escrevi demandou muito das minhas habilidades criativas e cognitivas. Quando chego nesse ponto, eu percebo que estou com a fadiga de escritor. Esse problema pode agravar, e muito, o problema da perda de avidez por escrever e é por isso que, quando percebo que estou simplesmente sem energias para escrever, passo a fazer outras coisas para distrair e recarregar as baterias. Nessas horas eu assisto a um filme ou série, jogo alguma coisa ou simplesmente passo um tempo com quem importa pra mim.
Não se force e escrever quando estiver sem vontade. Essa situação apenas fará com que seu cérebro crie um bloqueio para aquela tarefa, já que ela não é prazerosa e ele assimila aquilo como uma obrigação ruim. É natural que alguns dias não estejamos no melhor humor para trabalhar e é importante não brigar com nossa principal ferramenta de trabalho – o cérebro – nessas horas.
Desligar um pouco da escrita às vezes é o que você precisa para conectar-se de volta. Às vezes você sente que não pode tirar o dia de folga, mas se você não o fizer, o prejuízo pode ser muito maior e seu cérebro pode simplesmente desligar. Se você já tem uma rotina de escrita e quer segui-la, ótimo, mas coloque na rotina dias de descanso e obrigue-se a não escrever nesses dias para não se sobrecarregar.
Recuperando a avidez
Uma das coisas que eu faço para recuperar a avidez é revisitar o meu trabalho. Muito escritores tem o hábito de escrever muito, mas não de ler o que escreveram. E quando eu falo de ler, não falo apenas do produto final, – os capítulos ou textos que são entregues para o leitor – mas também todos os rascunhos, esquemas, fluxogramas, desenhos e anotações que acompanharam o processo criativo. Trilhar o mesmo caminho do seu processo inicial de criação ajuda o cérebro a reconhecer um universo familiar e acolhedor, o que pode estimular o prazer de escrever novamente. Às vezes eu visito outros projetos, diferentes daqueles que estou trabalhando – muitas vezes até mesmo finalizados – porque eu sei que eles são minha zona de conforto e mostram o que eu já alcancei.
Vai parecer repetitivo, mas outra coisa que faço para ajudar a recuperar minha paixão por escrever é ler. Dessa vez, no entanto, não falo das coisas que escrevi, mas de outros autores. É fácil se lembrar de como é prazeroso escrever quando você lê algo bem escrito e que te proporciona deleite em ler. Lembre-se daqueles livros que estão na sua estante há anos, esperando para serem lidos. Pegue aquele livro de cabeceira que você parou tantas vezes de ler porque estava sem tempo. Redescubra o prazer pela literatura imergindo no universo dos grandes autores que fizeram você querer se tornar um escritor em primeiro lugar, mais uma vez.
Sabe esses autores que eu citei aí em cima? Esses que te levaram a escrever? Você já parou para pesquisar sobre eles? Não? Então sugiro que faça! Às vezes, quando parece que eu nunca mais vou ter vontade de escrever novamente, procuro por algum documentário, filme ou mesmo um texto que conte sobre a história desses nomes que me inspiraram. Revitaliza a minha paixão por escrever descobrir como essas pessoas criaram suas obras, seus processos criativos e sua luta para publicarem. Fazer isso é tão potente que às vezes impulsiona, além da avidez, a motivação e a inspiração pra escrever! É um recurso que recomendo bastante.
Grande parte dos autores gosta de trabalhar em segredo, e não há problema nisso – aliás tem muitas vantagens. Apesar disso, às vezes é muito bom conversar com alguém que você confia sobre alguma parte da trama da sua história ou sobre um personagem interessante que você criou. Eu amo falar das coisas implícitas que coloquei nos meus projetos. Por exemplo, gosto de contar de onde tirei a referência para determinado personagem – quais foram as suas influências – ou mesmo razão pela qual ele possui o nome que lhe foi dado – se tem alguma lógica ou significado. Compartilhar com alguém que verdadeiramente se interessa pela magia do seu trabalho pode te ajudar a resgatar essa magia, enquanto você fala daquilo que dedicou-se a criar. Descrever os aspectos que você gosta na sua obra ativa, no subconsciente, vários pontos de interconexão entre ideias e recupera o prazer que você teve ao cria-los. Quando começo a falar sobre as pesquisas que fiz para determinar as características de um local, isso me deixa animado e me lembra o quanto o processo criativo foi – e pode – ser prazeroso.
Às vezes você se cansou de escrever sempre a mesma coisa – ou de escrever da mesma maneira – e isso tirou seu prazer na escrita. Se isso aconteceu, a solução pode ser bem simples: conheça algo novo! Às vezes eu não estou com muita vontade de escrever, mas procuro sobre alguma técnica que eu não conheço – ou só ouvi falar – para aprender. Quando vejo que é interessante, isso imediatamente me dá vontade de testar, nem que seja um pouquinho, nos meus projetos. Por exemplo, se você escreve apenas em terceira pessoa, tente escrever em primeira. Se você escreve apenas romance, tente escrever mistério! É muito difícil fazer isso do nada? Que tal pesquisar sobre material novo? Existem milhares de ferramentas, formas de planejar, gêneros, referências, estruturas narrativas, técnicas de escrita e estilos para serem descobertos. Até mesmo estudos sobre aspectos de uma obra que você goste podem servir e te mostrar o quão interessante um novo processo criativo, diferente do seu, pode ser. Abrace o novo!
Bom, essas são algumas coisas que você pode fazer e que geralmente funcionam pra mim. Certamente existem várias outras, mas espero que alguma delas te ajude. E se você perdeu completamente avidez ou paixão por escrever e está aqui, em desespero, não entre em pânico! Você pode e vai recuperá-la. Às vezes você só precisa de tempo.
É difícil começar, mas é fácil uma vez que você tenha realmente começado.
Não escreva
Para finalizar, deixo a reflexão de Bukowski nesse maravilhoso vídeo.
Não escreva. Você concorda, colega aprendiz?
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