O DESPERTAR

“Você encarava distraidamente as paredes de pedra da sala circular. Uma brisa morna soprava pela janela da torre, à medida que a luz alaranjada do pôr do sol se projetava sobre as mesas espalhadas no recinto. Seu grimório encontrava-se aberto ao lado de um pergaminho novo, – dava até para sentir seu cheiro – mas ambos estavam em branco. Aquele havia sido um ótimo dia para escrever, mas nenhuma ideia havia aparecido.

Já era a quarta semana seguida que você não tinha nenhuma ideia. No começo você passara dias inteiros com a pena nas mãos, com frustração, sem saber o que fazer. Em alguns dos dias, você jogara fora um punhado de rascunhos, rabiscados com ideias inacabadas e – aos seus olhos – pobres, que levaram a constantes acessos de raiva. Nos últimos dias, no entanto, você havia entrado num estado de aceitação e passara a maior parte do tempo olhando pela janela, alimentando os pássaros mensageiros, ou vagando sem rumo pelos infinitos andares inferiores da torre, a procura de salas e locais desconhecidos. – Você simplesmente não era mais capaz de escrever. Não havia o que fazer.

– É uma bela tarde. – Uma voz suave soou atrás de você, surpreendendo-lhe. Há muito que você não via aquela figura encapuzada – Espero não ter lhe assustado.

– Está tudo bem, não me assustou. É mesmo uma bela tarde – Você disse com desânimo.

– Sinto tristeza em tua voz. O que houve? – Ele disse enquanto andava pela sala, analisando as mesas espalhadas pelo recinto. Você percebeu, com vergonha, quando os olhos dele pousaram no grimório e o pergaminho abertos na mesa. – Deixe-me adivinhar, faltam ideias?

Você assentiu com a cabeça enquanto ele se dirigia para perto da janela, ao seu lado. Ele revirava os bolsos em busca de algo.

– Acho que não nasci pra isso. Não consigo escrever. Não sou criativo… – Você resmungou. A figura encapuzada sorriu.

O aprendiz encapuzado ergueu o braço direito que agora segurava um pergaminho velho, antes guardado no bolso das vestes. Com um movimento com a mão, ele fez o pergaminho flutuar à meia altura do chão, em seguida posicionando as duas mãos sobre ele. A marca do grimorium no pulso dele, bem como os dez dedos, se iluminaram de roxo enquanto o pergaminho se dissolveu no ar. Ele se aproximou de você, que observava a situaçao com um misto de desconfiança e curiosidade.

– Dez travas. – Ele disse ao posicionar as mãos em torno da sua cabeça. Dez fachos de luz se projetavam dos dedos na direçao da sua testa. Você não estava entendendo nada. – Sua mente está com dez travas. Vamos precisar removê-las se você quiser continuar. Posso sentir algo respirando devagar aí dentro na sua cabeça. Algo sonolento. Algo que você precisa despertar. Podemos?

Você não sabia o que responder, mas assentiu. Qualquer coisa era melhor que nada, mesmo que você não fizesse ideia do que ele estava falando.” 

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OITO. Oito anos. Esse foi o tempo que passei sem ter uma ideia. Esse foi o tempo que passei sem digitar uma linha criativa sequer. Para ser honesto, uma parte de mim já tinha desistido. Fazia tanto tempo que eu não criava alguma coisa, que eu achava que não podia mais criar. Nunca mais. Achava que eu seria incapaz de escrever qualquer coisa de novo, e que meu sonho de um dia contar minha história, idealizada há tanto tempo atrás, jamais se realizaria. Apesar disso, a paixão por criar ainda existia, e eu me esforçava ao máximo para escrever boas redações dissertativas no meu curso de inglês, já que esse era o único contato que eu tinha com produção de texto. Ócios de se fazer engenharia.
Devo confessar que é desesperador. Você passa uma vida tendo ideias, deixando-as para depois e, quando percebe, elas param de vir. Você sente que é incapaz e não foi feito pra criar e, por isso, acaba desistindo de fazer.
Abraham Maslow, um famoso psicólogo americano, ficou conhecido pela sua Hierarquia de necessidades. Em sua teoria, ele dividia as necessidades humanas em 5 grupos. Na base da pirâmide – Fisiológica – estariam as necessidades básicas como respirar, comer, dormir. Acima – na Segurança – teríamos o nível onde a saúde, a segurança da família e do corpo, por exemplo, estariam agrupadas. No patamar seguinte teríamos as necessidades Sociais, relacionadas a amizade, a família e a intimidade. No penúltimo nível – a Estima – estaria a necessidade de se ter auto-estima, confiança, respeito, e reconhecer seu próprio valor. Por fim, no topo da pirâmide, teríamos o patamar da Auto-Realização – o patamar que queremos abordar aqui. Os níveis mais baixos da pirâmide indicam as necessidades mais básicas e que devem ser preenchidas primeiro, antes das de alto nível. Os mais altos níveis, no entanto, seriam aqueles que levariam a realização pessoal e plenitude.

O nível da Auto-realização engloba as necessidades de encontrar seu potencial e de se desenvolver. É o nível que representa o desejo de alcançar tudo que alguém pode alcançar, para então se tornar aquilo tudo que deseja ser. É nesse grupo de necessidades que encontramos a necessidade criativa, de expressão, de imaginar, de construir. É nesse ponto que quero chegar: No fundo, todo mundo deseja construir alguma coisa.
A questão é que, quando você gosta muito de produzir uma coisa, por mais que outras te mantenham ocupado, essa atividade sempre vai lhe trazer prazer e plenitude. Seja na pintura, no teatro, na dança, na escrita, no desenho, no artesanato, nos esportes, ou mesmo programando, a necessidade de criar, construir e produzir é inerente ao ser humano.
Deixando de lado as explicações teóricas chatas, isso tudo é pra tentar te dizer que: Não é porque você está sem ideias agora que você é incapaz de escrever ou produzir. Provavelmente suas travas mentais – mental locks – estão trancadas há tanto tempo, que você sente que suas ideias morreram. Mas não, uma ideia nunca morre. Elas estão aí, dormentes, esperando que você as retome.
Qual é o parasita mais resiliente? Bactéria? Um vírus? Um parasita intestinal? Uma ideia. Resiliente. Altamente contagiosa. Uma vez que uma ideia tenha dominado o cérebro, é quase impossível erradicá-la. Uma ideia completamente formada – completamente compreendida… isso se fixa em algum lugar lá dentro.  – A Origem (2010)

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Sendo assim, como fazer essas ideias despertarem? E como é quando elas despertam? Para isso, é preciso falar das travas mentais.

Travas Mentais (Mental Locks)

Falando de travas mentais, uma das principais referências no pensamento criativo atual é Roger von Oech: um escritor, inventor, palestrante e fundador da empresa Creative Think (“Pense Criativo”), uma empresa de consultoria criativa e inovação da Califórnia. Além de possuir Ph.D. em “História das Ideias” pela Universidade de Stanford, von Oech ministrou – e ministra – diversas palestras sobre criatividade, ao lado de grandes mentes como Steve Jobs e Bill Gates. Sua empresa já prestou consultorias até mesmo para a Apple e a Disney.  Seu livro, “A Whack On the Side of the Head” – algo como “Uma pancada na lateral da cabeça” – é uma referência ao tratar da criatividade e ter ideias e, principalmente, ao falar das travas mentais.
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Von Oech identificou 10 travas mentais principais que, quando abertas, podem levar sua mente ao despertar. Essas travas devem ser abertas no seu dia-a-dia para facilitar o pensamento criativo, e podem ser empregadas em qualquer área da vida. Uma vez abertas, elas podem te ajudar em qualquer processo criativo, inclusive o de escrever um livro:

1. A Resposta Certa – Somos ensinados a vida toda que existe uma resposta exata para tudo o que vamos fazer. Em algumas ciências, isso é verdade, mas nas artes e na maioria do resto da vida, o número de respostas pra uma situação é ilimitado e baseado em diversos fatores. A proposta aqui é enxergar a vida não como uma série de problemas que devem ser resolvidos, mas como oportunidades. Pergunte coisas como “e se?” frente a desafios e novas formas de enxergar abrirão, eventualmente, essa trava.

2. Isso não é Lógico – Quando presos nessa trava, a pior consequência é bloquear a intuição. Existem dois tipos de pensamento: o sólido e o flexível. O flexível busca conexões e similaridades nas coisas. O sólido busca diferenças nelas. No processo criativo, ao buscar ideias, primeiro é necessário ventilar as ideias flexíveis e, uma vez que elas apareçam, aplicar o pensamento sólido para verificar sua praticidade – sua lógica. Se desde o início uma ideia for julgada por sua lógica, você impõe uma trava mental nessa ideia e consequentemente nessa área.

3. Seguir as Regras – É difícil ser inovador quando você segue cegamente diretrizes. Isso significa fazer o “advogado do Diabo”, questionando a existência de um padrão ou de uma convenção. Muitas vezes valores mudam, mas os padrões não. Essa trava mental é como uma avenida: se você seguir sempre por ela, e bloquear as saídas externas, nunca vai chegar em um destino diferente. Questione. Pensamento criativo envolve não apenas gerar novas ideias, mas também fugir daquelas que são obsoletas.

4. Ser Prático – Desde sempre escutamos que devemos ser “práticos” e ter os pés no chão. É um hábito perigoso abater ideias instantaneamente, encontrando os problemas nelas. Essa atitude mata a oportunidade de novidade e criatividade emergirem. É necessário resistir ao impulso de ter imediatamente uma perspectiva negativa e escutar as ideias com mente aberta. Quando acontecer de uma ideia ser imediatamente descartada, um bom exercício é tentar ter outra logo em seguida que utilize os aspectos bons da ideia anterior.

5. Evitar ambiguidade – Muitas vezes evitamos a ambiguidade pelos problemas de comunicação que ela pode gerar. Essa é uma ideia importante em situações práticas quando as consequências da má interpretação podem ser sérias. Em outros casos, tire vantagem da ambiguidade. Muita especificidade e detalhamento pode restringir seu fluxo de ideias. Tente ver a mesma ideia por vários ângulos. Pense em algo que pode ser mais de uma coisa de uma só vez.

6. Errar é errado – Cometer erros é parte do processo de aprendizado. Tomar riscos necessita que você exercite seu medo de errar. Às vezes é necessário confrontar o seu medo de errar e se arriscar, para que assim você possa entender as consequências desses erros e ter ideias melhores. Sair da sua zona de conforto e arriscar é a maneira de fazer as ideias grandes e inovadoras chegarem até você.

7. Brincar é Bobagem – Se a necessidade é a mãe da invenção, a brincadeira é o pai. Use-a para fertilizar seu pensamento. Na próxima vez que tiver um problema, brinque com ele. Criatividade requer incubação. Resolver um problema é plantar uma semente. Uma vez plantada, ela precisa de tempo pra crescer e espalhar suas raízes. A melhor forma pra isso é não confrontar e focar o problema, mas brincar entorno dele. As ideias vem de lugares estranhos e inesperados.

8. Essa não é minha Área – Visão Estreita (Tunnel Vision) é a receita para ficar preso e deixar de ter ideias. Se envolver com ideias e pessoas de outras áreas é a melhor forma para trazer ideias inovadoras, de diferentes disciplinas e assim poder ver o mundo de maneira diferente, abrindo essa trava.

9. Não ser tolo – Muitas pessoas colocam suas ideias em um pedestal, presos a ela de forma incontestável. É difícil ser objetivo quando você tem seu ego preso a uma ideia. Não tenha medo de bancar o tolo e inverter suas perspectivas sobre as coisas e aprenda a rir de si mesmo. Não se monitore muito com medo de se sentir tolo, às vezes algumas ideias inesperadas podem vir assim.

10. Eu não sou Criativo – A profecia auto-proclamada é poderosa. Quando você auto-trava sua mente, dizendo que você não é criativo, existe uma grande chance que você não seja. Destravar essa trava mental requer que você tenha fé nas suas ideias e acredite em si mesmo. À partir dai, você poderá usar as ferramentas para abrir as outras travas.
Uma vez que você tenha se livrado de todas essa travas mentais, seu cérebro vai estar pronto para receber ideias. Ainda assim, como fazê-las virem (ou voltarem)? Às vezes você pode não conseguir se livrar de todas as travas de uma só vez, mas sabendo que elas existem, você pode começar a trabalha-las. Seu cérebro é uma ferramenta poderosa e na maioria das vezes subestimada.

É aí que entramos na fase final do processo criativo da escrita, ou pelo menos como funcionou pra mim. Essa fase, eu chamo de “O Despertar”.

O Despertar

Após os oito anos sem ter uma ideia e me sentir incapaz de produzir qualquer coisa diferente de um texto argumentativo, eu consegui voltar a ter ideias, ao ponto de hoje ter muitos projetos e, na maioria das vezes, ideias diárias. Mas como?

“Começou muito tempo atrás”.


Eu mesmo não me recordo ao certo o primeiro dia que as ideias começaram a voltar. Talvez não tenha sido exatamente em um dia. O mais provável é que elas tenham voltado a aparecer gradativamente, até pulsarem na frequência de hoje.

O que eu chamo de ponto de ignição pra isso, foi justamente o dia que eu resolvi que eu iria voltar a escrever. Sua mente é responsável pelas ideias, e ela tem que se sentir autorizada (e incentivada) a produzir. Minha estratégia na época foi abrir um documento do Word e escrever toda e qualquer ideia que ainda existisse sobre o livro que eu havia começado 8 anos antes. Anotei as informações sem muita organização ou conexão. Assim, de qualquer jeito mesmo. Essas ideias (nomes e características de alguns personagens e uma ou outra cena) foram meu ponto de foco, minha âncora e foi à partir delas que me apoiei e que tudo aconteceu.

Nos primeiros dias, eu revivia mentalmente essas ideias, aos poucos adicionando ou removendo detalhes, tornando-as mais vivas. Repassava diálogos e cenários. Imaginava vestimentas, o clima e outras coisas menores. As coisas foram ganhando detalhes, complexidade e, eventualmente, proporção.
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Foi assim que, revisitando pensamentos, num ciclo de interseção e expansão progressiva, que as primeiras ideias novas surgiram. De início foram apenas alguns detalhes. Um personagem novo, uma cena nova, um acontecimento, um fato histórico, um evento, até que, em determinado momento, todas as ideias vieram de uma vez, e a história começou a crescer sozinha.

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É importante ressaltar que essas ideias todas são voláteis – ou seja, elas vão sumir se você não anotar, pois elas estão acompanhando o impulso que você conseguiu, e se você colocar um obstáculo em seu caminho, elas vão parar de vir. E como impedir que elas sejam obstruídas? É simples: não deixe o fluxo parar. Não deixe ideias retidas por muito tempo. Registre. Escreva. Grave. Desenhe. Produza. Faça um rascunho. Não deixe sua mente encher na total capacidade, ou ela vai tentar desesperadamente se agarrar a tudo – o que ela não vai conseguir – e ideias vão vazar, transbordando pro vazio, até que o fluxo vai parar mais uma vez, pelo medo de perder mais ideias, como uma forma de proteção contra a frustração.

Quando você der vazão para essas ideias, você vai permitir que seu cérebro encha de novo, e novas ideias virão, num ciclo praticamente infinito. E ai, quando você puder finalmente concretiza-las, você terá seus registros para te guiar, e sua mente vai só deslizar pelas ideias, tornando tudo mais suave e conectado de maneira fluida, permitindo até mesmo que você resolva com facilidade inconsistências e problemas que possam existir. Por fim, esses processos podem permitir que você tenha desfechos e retoques inesperados e brilhantes para suas ideias. E é assim que, por fim, você vai despertar.

Eu já posso sentir o seu despertar chegando. Você pode?